sábado, 21 de novembro de 2009

Exemplo de como dividir bens


Um testamento aberto

Eu, maior de dezesseis anos, e em meu perfeito juízo, graças à medicação psiquiátrica de uso continuado, declaro, a quem interessar possa alguns desejos meus finais, porém dinâmicos enquanto eu viver à deriva:

1) Deixo à Ciência da Medicina o usufruto do meu corpo cadavérico para que lucrem também com a minha falta de vida;

2) Aos psiquiatras, em particular, deixo minhas homenagens pela camisa-de-força, o tratamento de choque, o banimento do álcool e da falta de moderação da minha vida e, em conseqüência, muita da minha alegria;

3) Aos donos de bares que trabalhei um brinde aos dez por cento e aos donos de bares que freqüentei pleno gozo dos cem por cento;

4) Aos cães que me cercaram, muito obrigado por ensinar-me o amor a todos os animais e à natureza;

5) À bióloga e professora Tia Wal, deixo para cuidar, acumulativamente com o quinhão dela, meus 78.000 metros quadrados do Planeta. Conta esta feita a partir da área do Planeta pela população de 6,5 bilhões de habitantes irresponsáveis, com mares e águas doces inclusos;

6) Ao Bradesco “descompleto-lhe” um valor de cento e sessenta mil reais, caso minha morte seja natural. Fico na dúvida sobre bala perdida, pois se tornou algo muito natural nos embates bandido-policiais nossos de cada dia;

7) Ao povo brasileiro minhas desculpas por nunca ter conseguido votar bem, acho que falta de opção;

8) À Revista Veja, um spam que não consigo eliminar, continuo disponibilizando todas as minhas caixas de e-mails, pois a Editora Abril não desiste nunca de leitores, nem no além ela deixa de oferecer quatro edições grátis;

9) Aos escritores deposito todos os meus sonhos literários que nunca acordaram, mas, como insistente frasista, pelo menos exijo na minha campa ou lápide, como golpe de mestre, a inscrição eternizada: AQUI JAZ O AUTOR DESCONHECIDO;

10) O que sobrar é espólio aos jornalistas, pois só eles e meus filhos podem transformar em herói alguém que teve uma vida tão medíocre e covarde.

Goiandira é um estouro



FOGUETEIROS

Quando Jesus disse: “Vinde a mim as criancinhas”, certamente ele se encontrava também de braços abertos aos cãezinhos, afinal atrás de uma criança há sempre tal animalzinho. Jesus, entre tantas atividades, fora pastor e, com certeza, o cão fiel era seu escudeiro.
O banheiro e o cão, no caminhar progressivo da Humanidade, foram trazidos do fundo do quintal para dentro de casa. Transformou-se paulatinamente num membro da família, um próximo.
Tenho um desses orelhudos há quase quinze anos. Há mais de três anos toma medicação, três fórmulas, para o coração. Fica o tempo todo no meu encalço e, quando me ausento, enrola-se num canto demonstrando muita tristeza.
Este cachorro é diferente de tantos outros. Enquanto alguns se escondem com medo de fogos de artifício ele corre pra cima do barulho.
Tenho também uma cadela vira-lata que treme toda com os estrondos, inclusive de trovões, e se refugia embaixo da minha cama.
Todos os dias eu passeio com os dois nas coleiras num circuito repetido e eles adoram.
Apareceu na porta de minha casa uma cadela abandonada e, ainda por cima, pneumônica. Começamos a alimentá-la, em seguida deixamo-la na garagem. Vacinamos, “antibioticamos” e já dormia também em nossos aposentos.
Eu saia para a rua e ela ia solta comigo por toda a cidade. Quando saia com os outros dois amarrados ela nos seguia solta. Esteve conosco por mais de quarenta dias até que, numa salva de foguetes, saiu correndo e desapareceu.
Eu a procurei por três dias e três noites, debaixo de sol, chuva e estrelas até que a encontrei morta – fora atropelada!
Definitivamente eu não entendo estouro de foguetes – um absurdo. Não são somente gatos e cachorros que sofrem conseqüências, mas todos os animais, inclusive silvestres. Apesar da existência de monstros humanos caçadores, ainda resta uma fauna em nossos cerrados.
Ainda hão de ser proibidos os fogueteiros, mas somos de um País em que o normal é ser um fora-da-lei.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Onde moram nossos heróis


Penúltima Morada

Um amigo disse-me certa vez que devíamos amar muito nossos filhos porque esão eles que escolherão nossos asilos.
Eu não consigo me ver num asilo por abandono dos meus filhos, mas convenhamos que se a gente viver muito vai acabar prejudicando o dia-a-dia dos nossos herdeiros. A nora ou o genro tem o direito de não nos amar tanto. Uma pessoa idosa e, digamos, adoentada não suporta claridade, barulho, alimentação fora de hora e fica ranzinza, pois a vida eufórica de netos denota o fim da sua.
Num ato voluntário comecei a ajardinar a frente do asilo da nossa cidade. Em pouco tempo os velhinhos estavam à minha volta alegres com apenas a minha presença.
Sorrisos banguelas, andar manco, cabelos encanecidos, rugas abundantes, aparência doentia, jeito maluco, bengalas agressivas, membros tortuosos, membros ausentes, cacos humanos saltam aos olhos.
Sem parentes, mas com um salário invalidez que custeiam seus dias finais.
Um salário mínimo é muito pouco, mas se torna muito digno quando sustenta uma vida debilitada anos a fio. Existem idosos há mais de vinte anos persistindo em asilo.
Lá é a penúltima morada. Dali só mesmo o Campo da Esperança. Teve uma velhinha exceção, ainda lúcida, que aproveitou visita de advogados ao local e falou que tinha filhos em condições de cuidar dela. À força da Lei fora levada do asilo, mas por força da Lei e não do amor.
Um orfanato é um local de filhos sem pais e um asilo é o local de pais sem filhos. Uma diferença, porém é gritante, pois uma ou outra criança é adotada e os idosos não. Quer dizer, eu pelo menos, vez por outra, pretendo ir ao asilo buscar um idoso para passear e almoçar comigo.
Uma dica para quem quer conviver com eles: Trate-os como crianças e terá enormes possibilidades de agradá-los.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Grande Dr Marquinho


AVIÃO E CIRURGIA

Não sendo médico ou piloto estas duas atividades ou experiências estão fora de controle totalmente para comuns mortais como eu. Tanto o paciente quanto o passageiro estão à deriva esperando o fim da aventura, o mais rápido possível.
Tem gente que confia ou tem fé, mas a grande maioria a qual pertenço fica tensa, ansiosa e porque não dizer com medo.
Os parentes que aguardam no saguão do aeroporto ou na ante-sala cirúrgica do hospital também se sentem apreensivos. Talvez a impotência diante à espera seja ainda maior sacrifício aos mesmos.
Durante a nossa vida podemos evitar os aviões, mas cirurgias não, ainda mais que a nossa vida dependem delas.
Quando a gente descobre o que seja uma vida saudável a vaca já foi para o brejo. Nossos exageros vividos tornam-se responsáveis pelas mazelas do corpo. O açúcar consumido torna-se amargo, o álcool inebriante putrefata o grande órgão, as noites mal-dormidas resplandecem as rugas, alimentação saborosa torna as artérias intransitáveis para o sangue, a ausência de exercícios reumatiza cada dobra do esqueleto assim como a força desmedida descentraliza a coluna.
Um apêndice de hérnias, discos, hiatos...
Lei de causa e efeito – a inevitável conseqüência natural.
Através de reparos indeterminados há aquelas pessoas que virar avião. O bisturi hoje se tornou uma ferramenta para esculpir a beleza e as formas de alguma musa televisiva. Conheço uma que foi o bisturi formatou seu corpo por meia centena de vezes – que coragem! Mas a voz continua a mesma...
Tive uma intervenção cirúrgica de hérnia, ainda estou em convalescência, por conta do SUS, não sei se prefixo de suspense ou sufixo de Jesus! Ainda bem que no interior somos amigos de médicos, enfermeiros, faxineiros, cozinheiros, administradores e não um leito a mais, como nas capitais.
Confeccionei algumas frases durante a agonia:
1) Um médico do SUS será sempre mal remunerado porque a vida não tem preço.
2) O melhor Plano de Saúde é estar nas mãos de quem te ama.
3) O parco salário da enfermeira não apaga seu sorriso e nem seca a lágrima escondida – mais paciente e dedicada do que ela talvez a mãe!
4) A gente ta sempre de bola cheia porque existe quem verifica a pressão.
5) Cozinheira de hospital é muito sem sal.
6) O soro, este sim, desce redondo...
7) Os glúteos foram projetados pra levar injeção – qualquer outro uso chama-se versatilidade.
8) Médico do SUS trabalha sempre no horário de verão, ou seja, poucos o verão!
9) O Enfermeiro é o médico presente ou um presente do médico?
10) O médico usa a anestesia pra enganar a dor e a enfermeira usa o carinho.
11) Deus pode me levar, mas meu médico vai enfrentá-Lo.
12) Se levar pau na prova de saúde a recuperação é no hospital.
13) É provável que eu morra num hospital para confirmar que a existência de céu e inferno equivale-se a público e privado.